Quem aprende a dirigir, para tirar uma
carteira de habilitação, ouve com frequência de seus instrutores a
observação de que bom motorista deve ter também visão lateral, para
enxergar o que acontece ao seu lado. Na realidade, é preciso olhar para
os lados, para frente e para trás, pelos retrovisores. Com o tempo, o
que parecia impossível torna-se saudável rotina, contribuindo para a
segurança de condutores, passageiros e os demais veículos em circulação.
Pode ser uma parábola contemporânea do jeito de viver próprio dos
cristãos. É que lhes cabe uma atenção contínua às pessoas, aos fatos e
acontecimentos, sem perder o rumo. Olhar ao redor suscitará a atenção da
caridade. Olhar para trás será o saudável exercício da memória, com a
qual reconhecemos as falhas, para corrigi-las, e damos graças a Deus por
tudo o que nos concedeu.
Entretanto, há duas direções para as quais o nosso olhar precisa
continuamente se voltar, se queremos dar testemunho coerente e ser
sinais de Deus para o nosso tempo, a saber, olhar para o alto e olhar
para frente. No diálogo com Nicodemos (Cf. Jo 3, 14-21), aquele
visitante que alguém chamou de adorador noturno, cuja figura entra em
cena outras vezes (Cf. Jo 7, 50; Jo 19, 39), o Senhor indica o olhar da
fé que dá sentido à nossa existência e nos abre a estrada da salvação:
"Assim também será levantado o Filho do Homem, a fim de que todo o que
nele crer tenha vida eterna” (Jo 3, 14-15). Numa discussão com
interlocutores que o provocavam, assim disse Jesus: “Quando tiverdes
elevado o Filho do Homem, então sabereis que ‘eu sou’, e que nada faço
por mim mesmo, mas falo apenas aquilo que o Pai me ensinou" (Jo 8, 28).
Mais tarde Jesus retoma o tema, afirmando que quando for levantado da
terra, todos seriam atraídos a Ele (Cf. Jo 12, 32).
Olhar para o alto das montanhas da existência, que se encontram na
experiência da presença de Deus e da salvação que nos é oferecida em
Jesus Cristo. Há um risco em nosso tempo de nivelar tudo na altitude
zero, sem projetar grandes ideais, sem sonhos de perfeição moral,
considerando todas as atitudes e opções como indiferentes. Vale pensar
nos conteúdos absorvidos nos admiráveis meios de comunicação colocados à
nossa disposição. Sem uma educação, e esta começa na família, para
valores consistentes, valerá tudo e precisaremos aguardar algum tempo
para verificarmos as consequências. É bom lembrar que impérios gloriosos
de outros séculos caíram não só pelos percalços políticos, como também
pela decadência moral das caladas da noite!
O que existe de mais alto e mais digno para a vida humana, para que
nosso olhar de fé se volte reverente, é a Cruz de Nosso Senhor Jesus
Cristo. Voltar os olhos para ela é encontrar o amor maior, a prova
definitiva de que, "de fato, Deus amou tanto o mundo, que deu o seu
Filho único, para que todo o que nele crer não pereça, mas tenha a vida
eterna. Pois Deus enviou o seu Filho ao mundo, não para condenar o
mundo, mas para que o mundo seja salvo por ele" (Jo 3, 16- 17). O
desafio para o cristão é proclamar que a certeza da glória e realização
para toda a humanidade está na Cruz de Cristo (Cf. Gl 6, 14), na qual se
encontram dois amores: o amor infinito e eterno de Deus, que transborda
da Trindade para a humanidade, no Filho amado que deve ser ouvido e que
responde, com amor de Deus e de homem a este eterno amor. Dali mesmo,
da Cruz de Cristo, brota a torrente de amor, com os braços abertos a
todos os homens e mulheres de todos os tempos, chamados a se amarem
mutuamente, com o mesmo amor que vem desta fonte inigualável. Ninguém
olhe apenas para o chão do pecado, para baixo, onde se encontram tantas
misérias humanas, mas todos ergam seus olhos para o sinal glorioso da
salvação.
É ainda a Cruz que suscita outro olhar, sempre para frente. Certa
feita, Jesus chamou nada menos que a "multidão, juntamente com os
discípulos, e disse-lhes: 'Se alguém quer vir após mim, renuncie a si
mesmo, tome a sua cruz e siga-me! Pois quem quiser salvar sua vida a
perderá; mas quem perder sua vida por causa de mim e do Evangelho, a
salvará'" (Mc 8, 34-35). Para viver com dignidade e ser sinal de Deus, o
cristão há de seguir a Jesus. Trata-se de renunciar a ter um programa
próprio, certamente marcado por interesses egoístas, para lançar-se na
maravilhosa aventura do discipulado, o seguimento de Jesus. Quem dá tal
passo, olha para frente e descobre as veredas a serem percorridas no
cotidiano, mesmo com as eventuais dificuldades.
Os dias que vivemos podem ser fonte de desânimo para muitas pessoas. É
que fomos iludidos com os sonhos de consumo, nossos olhos brilharam com
as ofertas das vitrines, e até nos apegamos a nossos maravilhosos
aparelhinhos, cada vez mais caros, considerados como mágicos ou até
ilusoriamente feitos objetos de piedade. Muitos até os querem
abençoados, mas sem terem a coragem de mostrar o que reservam em suas
memórias! As negociatas dos grandes do mundo se multiplicaram aos
milhões, empresas pareciam transformadas em minas do Rei Midas. Parecia
que todo mundo teria casa própria, carro do ano, dinheiro na poupança,
saúde para dar e vender! De repente, a dura realidade volta, fica
difícil pagar o combustível do carro ou as dívidas do cartão de crédito,
os hábitos de luxo se revelam ilusórios!
Os governos não sabem, mesmo quando não o admitem publicamente, como
sair da terrível enrascada da crise gerada pelo egoísmo e pela
competição desenfreada. Observe-se, a modo de exemplo, o que disseram
recentemente instituições de credibilidade: "A inquestionável crise por
que passam, no Brasil, as instituições da Democracia Representativa,
especialmente o processo eleitoral, decorrente este de persistentes
vícios e distorções, tem produzido efeitos gravemente danosos ao próprio
sistema representativo, à legitimidade dos pleitos e à credibilidade
dos mandatários eleitos para exercer a soberania popular... É necessário
que todos os cidadãos colaborem no esforço comum de enfrentar os
desafios, que só pode obter resultados válidos se forem respeitados os
cânones constitucionais, sem que a Nação corra o risco de interromper a
normalidade da vida democrática". (Declaração conjunta das presidências
da CNBB e da OAB).
Volta à tona a mesma proposta de Jesus, cujo nome é Cruz, que pede
seguimento do Evangelho. As práticas sugeridas pelo Senhor passam pela
sobriedade e pela partilha, apontam para mãos que se lavam da iniquidade
cometida, conversão verdadeira, seriedade e dedicação no trabalho,
diálogo sincero, superação da tendência de acusação mútua, construção de
pontes entre os grupos diferentes na sociedade. Podem parecer até
ingênuas estas estradas do evangelho, mas, sem elas, ninguém vai para
frente e nem alcança os cumes da verdadeira realização, cujo nome
verdadeiro é salvação. A escolha é nossa!
Dom Alberto Taveira Corrêa
Arcebispo de Belém do Pará
Assessor Eclesiástico da RCCBRASIL